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quinta-feira, 25 de março de 2010

Cotidiano Face 33



 
Este pequeno poema foi uma singela homenagem, de um espírito sem reservas, que  postei no Blog da Marli, numa postagem desta sobre o poder do sorriso, com a premissa de que ela me permita colocá-lo no meu blog, ai vai.

                                                                            *

Do sorrir...

Hoje acordei sorrindo,
como se incostumaz,
como se pioneiro,
assim permaneci...o dia inteiro.

Passava num espelho e via,
meu rosto resplandecia;
olhava na retina de outros olhos,
e percebia,
no foco, minha imagem,
irradiando alegria.

Num determinado momento,
como num entrevero emocional,
meu rosto sitia-se saudade,
e uma lágrima se expôe...
Digo-lhe: Ah! És derradeira.

Tristeza...vou deixando para tráz,
esquecidas,
arquivo-as nos sotãos do coração.

(verdade isso em mim...mazelas,
são omitidas, apago-as fácil,
sou homem de lembrar o amor,
não suas atrofias)

Mas a alegria,
ah, esta me contagia,
por isso estive sorrindo,
ao léu deixo uma dor, se esvaindo.

Vou me olhar mais no espelho,
aponto de cativar minha imagem,
fazê-la acontecer,
que perceba a tristeza se indo
quando vislumbrar meu próprio rosto...sorrindo!

sábado, 20 de março de 2010

Cotidiano Face 20

Um poema antigo,
em eventual devaneio, sobrevive na memória.


Não sou a antítese,
não sou o altar,
estou no centro das normalidades.

Não sou o grande,
não sou o pequeno,
estou no intermediário limite das condições.

Não sou o imoral,
não sou a moral,
tenho no sangue a semente da paixão
e me dôo ao mundo
o que tão simples me faço, e sou...Homem!

quinta-feira, 4 de março de 2010

O DILEMA, um capítulo



O DILEMA,    onde o Bem e Mal lutam uma guerra sem tréguas...



COMENTÁRIO:  O texto a seguir é um dos capítulos do romance O Dilema, em fase de encerramento, estarei colocando no Blog, capítulos alternados do mesmo, que serão retirados após alguns dias, neste meio tempo eu agradeceria as opiniões a respeito. Tendo tempo, leiam, critiquem, joguem pedras, afinal quem sai na chuva, tende a se molhar. Vocês estarão me ajudando numa tomada de decisão, que é, devo ou não dispor-me a publicá-lo.

                                                                            *

Muito mais tarde, quando dou por mim, está o sol despontando no horizonte. Sem saber como cheguei lá, estou sentado na parte mais alta do templo, com os pés balançando no vazio, enquanto ao meu lado, me observando em silêncio, displicentemente acomodado, está em sua forma mais corriqueira o senhor atual do meu destino. Ficamos por tempos admirando o magnífico raiar de um novo dia. Até que Ele quebra o silêncio:

- Viajemos de novo, Augusto ?! Percebo que ainda encontras em tua mente, por mais que te tenha afetado o que vivenciastes, uma justificativa para tal ignomínia. Cara, afronta, mas ainda assim uma lição para os homens, em seu crescimento humano, imaginas tu. Tipo da coisa que não deve se repetir. Bem, vejamos, conheço tantas histórias, tantos fatos escrotos, desta vil natureza humana, que não me será difícil te localizar num outro momento de exemplar apologia, ao ser pseudamente moral.

                                                                            *

Como num piscar de olhos, me encontrei pisando as terras de um outro lugar, em meus pés senti a refrescante tepidez das águas cristalinas de um pequeno córrego, que se somam, após uma queda de uns doze metros, com as do mar. Estou sentado numa saliência de pedra, quase nas bordas do encarpado conglomerado de rochedos, que dali, para os dois lados, por algumas centenas de metros, faz divisa com o mar, até ambas se esconderem em curvas, antes da linha do horizonte. Como uma obra mágica da natureza, justo no local em que a pequena cascata se atira ao mar, o rochedo se fendeu, num espaço de uns vinte metros, deixando que as águas salgadas trabalhassem a terra, para, após milhênios de dias de marés escavadoras, termos o que temos hoje, uma pequena enseada de uns dezeseis mil metros quadrados, empraiada por uma finíssima areia branca, e escondida dos olhares curiosos daqueles que desconhecem a sua localização.

Deus, que encanto poder simplesmente vivenciar tal paraíso, tal magnitude de esplendor e sensibilidade. Só aqueles que já se entregaram ao prazer de se deixar extasiar pelas magias da mãe natura e a colheram no corpo e na alma, e se sentem libertos das amarras mundanas, sejam de que tipo fôr, sabem do estou falando neste momento, do valor imensurável desta experiência. Viajantes, nos transportamos para o mundo real da natureza, e colhemos em seu seio os bálsamos que reequilibram as nossas descrenças e as nossas fraquezas. É assumindo nossas fantasias e deixando o pensamento colher, solto, as informações do meio ambiente, em seu mais íntimo fotografar, que nos reorientamos para a vida. Seja vivenciando os pássaros esvoaçantes com seus cantares ímpares e musicais; seja acompanhando as borboletas multicoloridas, pinturas abstratas e ultrahumanas de tons inconcebíveis, em suas evoluções aéreas, que nos embalam os sentidos; seja observando os pequenos acarás, na água rasa, abaixo de aguapés protetores, que guardam seus pequenos filhotes com alucinada atenção; para no mínimo sinal de perigo, recolhê-los a todos, como se os engolisse, dentro da própria bocarra, e, vê-los fluir, de novo, para a liberdade, quando a mãe/pai os instinta seguros. E outros mais, e outros mais... Me perguntariam: - mas não é cruel tanbém, na natureza, o coexistir das espécies ? Sabemos que sim, sabemos também, porém, que a mola mestra das reações dos filhos da mãe terra é o instinto de sobrevivência; enquanto que ao homem foi cedida uma semente universal chamada inteligência, e com ela todas as leis que a regem, e são muitas: humanidade, discernimento, equilibrio, etc., etc., etc. e tal. Logo, quando o homem atenta contra os desígnios da irmandade, êle o faz de forma consciente, pensada e determinado. E não importam os motivos, somos uma raça que parece ter no cerne das nossas emoções, sinuosos prazeres em tentar e afrontar as premissas do criador. Seja de onde fôr que nos observe, o Pai deve possuir uma inesgotável fonte de paciência e amor, pois somos o que somos desde o princípio dos tempos e continuamos em frente. Talvez, na realidade, o nosso ambíguo comportamento seja uma predisposição enquanto raça terrena, não creio sejam os outros mundos povoados por seres tão imperfeitos enquanto consciência. Vejamos, somos hoje donos de uma inteligência vivaz e buscamos determinados e instigantes os conhecimentos universais, mas em nosso instinto somos talvez mais cruéis do que os homens das cavernas, nossos ancestrais. O bem e o mal se equilibram dentro de nós como se estivessem permanentemente sobre cordas bambas, ora somos atraídos para um lado, ora para o outro, e o mediador da nossa decisão, via de regra, tem sido o egoísmo ou a ganância, muitas poucas vezês damos margem há um ato de altruísmo. Um frágil portal separa os dois lados, logo é precário, e assustador, nos dias de hoje não se temer possa alguem, ou um grupo, visualizar dominar o mundo terreno, encaminhando-o para o pior. Atentemos para a tecnologia que nos encaminha para uma maioridade perante o cosmos e fica fácil antever tal possível realidade.

Penso que deixei minha mente fluir para os árduos caminhos da natureza, porque sei que enquanto estivêssemos com nossas vidas arraigadas aos seus desígnios, que não aos da civilização dos nossos dias, estaríamos seguros e ninguem, seja pessoa ou grupo, conseguiria nos dominar como um todo, como nossa própria história o comprova. Diziam, os antigos, não há mal que para sempre dure... Este raciocínio, talvez num futuro não tão remoto, poderá ser um equívoco terrível, pois que momento mais oportuno poderia escolher o senhor das trevas, que não este, para movimentar suas hostes. Divagações de quem está tolhido, fragilizado e ainda que incólume, senão espiritual ao menos fisicamente, até este momento, e não tem a mínima idéia do que esperar para o futuro, senão degradação.

- Vejo que teu raciocínio ainda te mantém lúcido, Augusto, que procuras sobre todas as coisas manter vivo o teu pensamento e a tua sanidade. Ainda que te tenha amordaçado aos meus desejos, há um poder dentro de ti que tem procurado manter-te sóbrio. Estou impressionado...

Novamente Ele, surgindo quando menos se espera, do nada. Sentado quase ao meu lado, numa pose de serena majestade, como que me sorri, como que me lamente. Então, abrindo os braços e como que englobando em seu gesto todo o ambiente que nos rodeia, me questiona:

- Sabes aonde estás ? Porque estamos aqui ?

- Onde estamos, não sei ! Salvo que é um lugar parasidíaco que não merece em hipótese alguma conviver com a tua presença, que representa a antítese de tudo o que é belo. Porque ? Naturalmente, vais me fazer sentir, num outro exemplo, o quanto teu poder malígno é destrutivo e corruptor.

Estranhamente, minha voz soou calma, quase serena. Tal qual a do meu interlocutor.

- Augusto, Augusto ! Não fui eu quem moldou a índole da raça humana, quando me revoltei e fui expulsso da casa paterna, a estrutura do que voces seriam já estava plenamente alicerçada. O bem e o mal que voces podem semear não tem nada a ver comigo, é da vossa natureza. Sóis a vontade do Pai, eu apenas usufruo do lado negro da vossa personalidade.

Um silêncio opressor toma conta do ambiente, tudo se cala, mesmo a brisa do mar, as ondas espumantes com suas acrobacias, tudo... Como se adivinhassem a violência que explodiu.

Como uma pantera, enfurecida e mortal, se jogou sobre mim. Não tive tempo sequer de prever, pensar, ou de me defender. Primeiro um violento tapa com as costas da mão me deixou tonto, a seguir, enquanto me erguia cambaleante, um murro vindo de baixo para cima atingiu em cheio meu maxilar a ponto de me erguer do chão. No instante seguinte me vi no espaço, numa queda espalhafatosa, aonde meus braços e pernas inconscientemente pareciam procurar algo em que se agarrar, inútil. Logo, me esborrachei nas frias águas do mar, que, de pronto, me reativaram os sentidos. Quando consegui finalmente retornar à tona, sôfrego e furioso, procurei localizá-lo, pronto para reagir. Para minha surpresa, se mantinha no alto do rochedo e quando percebeu minha atitude desandou a rir de forma gozadora e bonachona. E, eu, na água, esbravejando. Gritou, quando parou de me sarrear:

- Nade até a praia, te espero lá, espero que ao chegares tua presunção já tenha se recolhido à tua pequenez.

Que remédio, esta era a minha única alternativa, visto que o mesmo me havia abandonado à própria sorte. A medida em que nadava retomava o contrôle dos meus nervos. Quando cheguei na praia, eu o reencontrei deitado na areia, em um aparente distraído relaxamento. Pura utopia.

- Tente, vamos, tente, Augusto. Tente ir a desforra.

Ao que, calo, introspectivo, aguardando sua atitude.

- Esperto, Augusto, muito esperto. Vejo que apesar de te saberes sob meu domínio, ainda não estás convencido da mazela, destrutiva e acintosamente egocentrica, que cerceia o bem,  presente na alma humana.

Levanta-se e diz:

- Vem, caminha comigo, voltemos para o alto dos rochedos, é de lá que te farei iniciar uma nova jornada, ainda mais predadora e desumana daquela em que há pouco te fiz espectador. Agora, algumas diferenças no traçado dos fatos, em alguns momentos mais do que visualizar estarás vivendo as agonias dos desafortunados.

A seguir, quando já havíamos atingido o alto do rochedo, no mesmo local em que estivera antes, me aponta o horizonte, num ponto do oceano, aonde uma mal identificada referência se faz visualizar, e diz:

- É, lá, que começa, aqui na terra chamada brasilis, neste ano de mil e seiscentos e trinta e nove, ao qual retornamos no tempo, uma das mais negras páginas da futura nação brasileira, escrita com suor, dor, humilhação e sangue, pela raça negra africana, enquanto escravizada pelo homem branco.

Aquele ponto que ainda não conseguintes identificar, lá no oceano, junto ao horizonte, é um dos primeiros navios negreiros que irão fundear suas âncoras, justo aqui, nesta enseada em que estamos. Em algum lugar próximo, fica a vila de São Vicente, no litoral do hoje estado paulista. Está, é óbvio, superlotado da mais triste carga, jamais imaginada pelo teu Deus, poderiam os homens conceber: humanos, de pele negra, capturados na distante Africa. Te farei viver alguns destes momentos de agonia e degradação, viverás na pele deste homem, para que possas sentir na própria pele e na alma, a animalesca ação de uma sociedade chamada civilizada. E, junto a ela, conivente com ela, corroborando com ela, parte ativa e pertinente, os magistrados da vossa religião, cristã ou não, possesivos senhores da fé. Já que teu Deus é tão justo, haverás de te perguntar como pôde permitir tais horrores. E, não apela, sem essa de dizer que sou o culpado.

Num súbito estalar de dedos, bem na minha cara, ordena:

- Vá, escravo.

                                                                                 *

Foi como se um tornado, local e com indescritível potência tivesse me capturado e chupado para dentro; me vi jogado de um lado para outro dentro da espiral enquanto era aspirado irremediavelmente para o centro, até desmaiar.

Quanto retornei ao domínio da minha consciência, me vi, ainda que eu mesmo, enquanto mente e alma, coabitando o corpo de outra pessoa. O primeiro impacto que senti foi um espasmo mal contido de ânsia de vômito, tal o fedor que infestava o local, parecia o de um depósito cloacal a céu aberto. Uma penumbra, mais para escuridão, tomava conta do lugar. Só aos poucos, conforme a vista se acostumava, é que fui identificando onde e como estava. O demônio havia cumprido sua deixa, lá estava eu jogado, junto com outros tantos, no porão fétido de um navio negreiro, transvestindo a pele negra de um escravizado africano. Tentei, então, me levantar e sair do canto em que estava, para ir procurar um pouco de ar junto a abertura que se avistava no teto, no centro do local. Foi como se uma centena de agulhas me estivessem ferindo a pele, pois só neste momento é que percebi a terrível dor, dilacerante, que me atormentava, a ponto de ser quase insurportável. Eu fôra surrado de forma brutal, não havia, nas minhas costas, braços, dorso e ventre, um único ponto que não estivesse com vergões ou em chagas. Um outro detalhe chamou a minha atenção, havia no meu tornozelo direito um elo de ferro moldado a uma corrente, que por sua vez era presa ao corpo do navio. Tentei raciocinar, me foi impossível, tamanha a dor que sentia. Logo, principiei a adernar numa sonolência talvez parecida com a morte, tal a magnitude da sua atração; nela me deixei afundar mansamente, mesmo porque parecia um estágio aonde não havia dor. Talvez ai a explicação de porque algumas pessoas, que sofrem muito com uma doença, simplesmente deixam de querer viver e acolhem, passivos, a morte. Não era porém esta a experiência a que eu estava predestinado, logo me retiraram, na marra, da fortuita paz que sentira. Alguem estava batendo vigorosamente em meu rosto, com a mão aberta, enquanto falava num tom irritado e tenso:

- Não vais morrer não, negão. Volta ! Teu destino é me dar lucro, já chega aqueles que morreram com escorbuto e o raio que o parta e que tive que jogar no mar. Trata de viver, este corpo é forte e jovem. A surra deve ter te servido de lição, agora já sabes quem é o teu dono, e o mesmo deve estar acontecendo com os outros. Fostes o escolhido justamente porque és o mais resistente de toda esta cambada e eu precisava dar um exemplo.

E, se dirigindo a outra pessoa, ordena de forma rude e seca:

- Tonhão, solta êle. Faça com que vá lá prá cima, vou lhe dar um remédio. Um santo remédio.

O tom usado no final na fraze foi uma ironia só. Após, saiu, escada acima. Mal o vi pelas costas enquanto subia, até sumir. Só então é que percebo aquêle a quem se dirigira, o tal do Tonhão. É um negrão forte e alto, um verdadeiro gigante, reconheço nele o pior dos adversários. Aquele, que para não sofrer de um mesmo mal, empresta seus serviços ao algoz. Via de regra, são vigilantemente cruéis, porque sabem de onde provém a própria sobrevivência. É, em silêncio, que se ocupa da tarefa indicada. Quando me sinto livre permaneço aquietado, não estou nem um pouco interessado em irritar tal guardião, é evidente a sua selvageria. Curiosamente, o mesmo me trata quase com humanidade, pois colocando suas maozorras por debaixo dos meus braços me ajuda a levantar, para em seguida me dar um leve empurrão rumo a escada. Não é sem dor que faço o trajeto. Preciso por a mão nos olhos para protegê-los da luminosidade do sol, que está a pino, quando piso o chão do convéz da embarcação. Tâo logo chego, escuto nas minhas costas, uma ordem seca:

- Tonhâo, jogue este macaco no mar. Deixe-o de molho por uma meia hora.

Como o mesmo permanece por momentos como que em dúvida, inerte, e antes que eu próprio consiga definir as consequências de tal medida, dois outros sabujos brancos que estavam por ali, marinheiros provavelmente, me empurram com brusquidão e eu caio. Logo, me vejo erguido pelos dois, um nos braços outro nos pés, que dão alguns passos e sem pestanejar me jogam no mar. Se num primeiro momento, senti, invéz de um choque, como que a benção de um alívio refrescante nos meus ferimentos, a seguir, atingiu-me uma ardência infernal; devido a ação do iodo e do sal, fiquei insensível a qualquer coisa que estivesse acontecendo ao meu redor. Tal a dormência, que prostou os meus sentidos, mas ainda assim lembro que em meu instinto nadei atabalhoado buscando um ponto aonde pudesse ficar em pé.

Não sei quanto tempo fiquei dentro da água, só voltei a mim quando a noite se fazia soberana e grilos cantavam estridentes melodias nas moitas dos arbustos à beira da praia. Eu fôra deitado de bruços sobre uma treliça de palha, nú. Ainda, que inacreditável, pouco me incomodavam os ferimentos, as dores eram diminutas, como se já estivessem cicatrizando ou quase, pois alguns começavam inclusive a coçar. Me sentia bem, com forças, o que não entendia. Como conceber, afinal, há poucas horas estava em frangalhos e tomado de dores. Fáctua impressão, logo dormi, sentindo em meu corpo uma brisa quase morna, que parecia despreender da areia.

Acordei mais tarde, já devia ser de madrugada, pois uma leve claridade parecia dispersar a noite, quando senti alguém movendo meu corpo. Ainda sem ver quem me escorava por tráz, pondo-me sentado na treliça, vi na minha frente, ajoelhada e tendo nas mãos uma vasilha de cerâmica cheia de algum alimento que fumegava de tão quente, uma jovem de pele parda, não tão negra. Quando me viu com os olhos muito abertos, sorriu amplamente e comentou algo com quem estava atráz de mim, num linguajar que não entendi mas captei o sentido:

- Não foi desta vêz, está de volta !

A seguir, com uma tosca colher de taquara, começou a me alimentar. Naquele momento, o insonso angu, de alguma coisa, me pareceu o mais saboroso de todos os alimentos. Mantendo um silêncio pesado me obrigou a comer rápido, enquanto seus olhos e ouvidos permaneciam vigilantes, controlando o que ocorria ao redor, como se temesse ser surpreendida. Terminada a refeição, sinalizou para que deitasse, tanto para mim quanto para aquêle que ainda me ajudava. Só ouvi um grunhido as minhas costas e logo me vi estirado. Um choque freiou minhas reações, quando o identifiquei, pois ao meu lado, de pé, me observando, solícito, permanecia a figura hérculea que é Tonhão. Devo ter ficado pálido ou qualquer coisa parecida pois ambos pareceram se divertir às minhas custas, ainda que em silêncio, riam acaloradamente para dentro, de orelha a orelha. Percebi que havia cometido um terrível erro de julgamento em relação àquele que agora me ajudava. Enquanto o gigante êbano se afastava, a jovem se aproximou de meu rosto e diz algumas palavras que não entendo e isto fica evidente em minha expressão. Então, faz alguns sinais e eu os entendo, me diz, rude e com todas as letras: fique de bruços, de olhos fechados e finja estar ainda desacordado. Quando passamos por algumas experiências não são necessárias grandes explicações, em nosso instinto sabemos o porque das coisas. Ali, permanecer desacordado, significava a minha cura e, quiçá, a sobrevida.

O dia nunca demorou tanto a passar em toda a minha vida quanto naquêle dia. Fora a tortura angustiante das horas, que pareciam não passar, precisei suportar um sol causticante. Quase fiquei agradecido quando ouvi, justo quando o sol quase queimava, o feitor gritar, distante:

- Levem este negro até o mar, dêem-lhe um banho demorado, só assim curará as feridas, afinal, se não estiver de posse dos seus sentidos até amanhã, quanto partiremos para São Vicente, vou abandoná-lo para que morra à mingua. Já que o têem tratado, e isto é evidente, tratem de fazê-lo bem.

Assim o fizeram dois negros para mim desconhecidos, que observei com os olhos semicerrados. Me deixaram de molho e na companhia da jovem que me ajudara de madrugada. Escorado num de seus braços, eu a assisti me massagear com cuidado. Na realidade, ainda que nas águas do mar, me deu um banho completo e demorado. Seus longos dedos estiveram em todas as áreas do meu corpo, inclusive nas partes pubentas. Não foi sem surpresa que senti um frenessi correr por meu corpo quando isto aconteceu. Nossos olhos se tocaram e soubemos que seríamos importantes um para o outro.

Só a noitinha é que voltei a vê-la, novamente com Tonhão. Antes que falassem, lhes agradeci, sem que eu mesmo percebesse no meu linguajar de origem.

- Salvaram minha vida, ela é de vocês.

Ao que, ela identificou:

- Veja, Tonhão, êle é banto. Não é atoa ser tão resistente.

Em seguida, me fala:

- Olha, falo um pouco tua língua, sou de origem fula, das Guinés, meu nome é One.

Com o dedo indicador aponta para Tonhão, e diz:

- Tonhão é banto, como tu. Êle já não fala, pois quando veio de Algarves na mesma viagem em que vim, tentou resistir a um comando; o de jogar um escravo doente ainda vivo no mar, e por castigo lhe bateram muito, tal como a ti, e ainda lhe cortaram a língua porque enquanto apanhava xingou muito. Pedi pra cuidar dele, o que permitiram, pois afinal um negro jovem e forte vale boa prata.

Sua voz soou compassada e meiga quando retornou, após uma breve pausa aonde pareceu ponderar:

- Esqueça isto de dever, é muito mais do que apenas dever uma vida. Aqui, quem não ajuda, acredite, quando precisar não será ajudado. São excecções aquêles que como tu são novatos, esta é uma forma de lhes informar nossos costumes. Esqueça os conceitos tribais, aqui só sobrevive quem entende que é um escravo e se conportar como um. Nos ajudamos todos nós, não há outro modo. Furtar-se de ser um irmão é condenar-se ao isolamento. Pouco tempo sobrevivem aqueles que se isolam, pois nós mesmos os sobrecarregaremos com as tarefas mais penosas. Se este fôr o teu modo de ser, se não te importas com os outros, te aconselho a fugir, quando puderes, mesmo que isto signifique um suicídio, puro e simples. Estamos numa terra estranha, te caçarão de todas as formas, brancos, feras e os índios. Só, na mata, é como assinar uma sentença de morte, pois desconhecemos ainda todo o meio ambiente que nos cerca, e é completamente diferente daquele donde viemos. Portanto, seja prudente, te acalma, te orienta e fica unido.

Parecia uma idosa muito paciente repassando os ensinamentos de longa idade e não uma jovem negrinha frágil e pequena. Não pude deixar de sorrir e comigo, talvez, aquele que me cedera seu corpo. Nisto, a realidade se afigura, era apenas um corpo, a alma que o habitara já havia cumprido seu carma, havia partido justo no momento anterior em que eu o habitara. Ali, era como se eu estivesse realmente vivo, não mais apenas um observador. As dores que sentira, o frenesi que exaltara, o vivenciar que experiementara, eram momentos para ser reelembrados na minha própria memória. Logo, os atos que testemunhasse seriam ações do meu próprio dicernimento, portanto, da minha responsabilidade. Antes, que me pronunciasse, minha pequena protetora retorna:

- Se não sabes ainda, fique sabendo que amanhã cedo partiremos para a vila de São Vicente, e é uma caminhada dura, por trilhas pouco trabalhadas. Deverás estar pronto e não creio que nem mesmo a ti, que está se recuperando, lhe pouparão uma tarefa penosa.

Nada disse, permanecendo num silêncio enganadoramente tranquilo, me era inacreditável, ainda, apesar de todos os fatos já rememorados, crer na realidade núa e crúa em que o demo tem situado a minha vida. Experiemente, tu, que és um exemplar típico do século em que vivemos, virtualmente globalizado, vestir a roupagem da pele de um negro escravo, com todas as viscitudes que o atordoam, e venha depois me dizer que estou exagerando. One, que me observava, dá fim aos meus devaneios, diz:

- Acho melhor que descances, logo tua expressão não será tão distante, gostarás de estar longe do inferno em que viestes parar. Durma, meu rei.

Dizendo isto, fêz um sinal para Tonhão, que de pronto se dizpos acompanhá-la, e a seguiu como se fôra um cão de guarda, fiel e de prontidão. Meu rei, pensei eu, que ironia, não seria ela, isto sim, do seu povo, uma rainha.

Na madrugada seguinte, fui acordado da forma mais inusitada que poderia imaginar, pois uma comichão insuportável nas narinas adentrou-me no corpo e me retirou de um sono ainda profundo, como o fôra toda a noite. Foi sobreassaltado que, ainda sem abrir os olhos, dei como que um pulo, ficando de cócoras, para dar de cara com a feição risonha, meiga e sapeca de One, que segurava ainda numa das mãos uma pena, de alguma ave qualquer. Debochou, graciosa, da minha reação:

- Que sono, hem sem nome, nada como estar em paz consigo mesmo para poder encostar a cabeça na areia e adernar no mundo justo da inconsciência do dormir, e sonhar. Me conta, ela era bonita, afinal estavas ai como que abraçando e acarinhando a amada. Só faltou que beijasses a areia, teria sido hilário te ver acordar assustado com teu próprio sonho.

Por momentos permaneço desorientado e então me vem a mente a lembrança do que sonhara, e com quem. Ainda que aqui, escravo e tudo o mais, meu subconsciente me levou de volta à minha própria realidade, pois no sonho estivera entregue a um edílio amoroso, e minha parceira nâo era outra que não Sandra, minha deusa e meu calvário. Por segundos curti as doações emanadas dum quase outrora, ainda que dor, amor e saudade. One, porém, fêz questão de me fazer retornar ao momento que vivia:

- Oh, Oh, chô devaneio. A vida é aqui e agora, sem nome.

Ao que, finalmente, lhe respondi, saindo do meu mutismo:

- Meu nome é Zumba, rainha One, um vassalo a mais no seu reino. Sou grato pelo seu interêsse, minha rainha, e me sinto quase cem por cento, obrigado. Já posso responder por mim, deixando de ser um peso à vossa coletividade.

- Isto é bom, Zumba, porque os homens do feitor já estão por vir. Junte-se aos outros, procure não chamar a atenção, cumpre as ordens, não se isole e tudo dará certo. Bem, ou mal, haveremos de sobreviver e um dia conquistaremos nossa liberdade. Não pense que num minuto sequer este não é o nosso maior desejo. Só a esperança de a conquistarmos é que nos mantém vivos, ainda que humildes, humilhados e padecendo dia a dia com o frio e a fome. Quanto ao fato de me chamares rainha, meu rei, nosso pai santo te identificou como minha semente, logo, se está dito, e como eu o reconheço, aceito-te harmonia, ainda que a dor seja o nosso leito.

Em seguida, afastou-se, caminhando lentamente, sem olhar prá tráz. Quanto a mim, fiquei mais enrolado ainda nas minhas perdições. E nas novas interrogações, porque respeite-se o conhecimento dos escolhidos que se comunicam e entemdem as vozes do além. Mas, as perguntas são: - Caberia a mim novo morador daquele corpo ser semente, ou ao que partira ? Concebe-se realizar a união, não estaria alterando uma ordem universal do criador ? Não haveria ali sorrateira a mão de Satã ?

Coisas assim ficaram durante muito tempo tomando conta da minha mente, sitiando-a isolada do mundo exterior, tanto que quando dei por mim lá estava, desapercebido, carregando no ombro uma das extremidades de uma vara, sob a qual se encontrava amarrada uma rede, toda ela tramada em couro. Eu ia na parte de tráz, na frente reconheci a portentosa figura de Tonhão. Éramos quase da mesma altura, e para minha sorte a pessoa que adormia na rede, uma mulher, era leve e pequena, pois nem de perto possuo a estrutura física e a resistência do mesmo. Só então me dou conta de que o sol está se pondo no horizonte e que passara o dia sem ao menos percebê-lo, o que me pareceu uma dádiva. Neste momento adentramos numa clareira, quase a beira-mar, e percebo que o estiveramos costeando. Uma ordem é gritada em alto e bom tom:

- Vamos acampar ! Tratem de organizar proteções porque vem chuva ai.

O que não faz o temor, mal a ordem é dada e por todos os lados, obreiros e silenciosos, os cativos se põem em atividade, cada um parecendo saber de antemão a sua obrigação. Eu, inclusive, porque mal situamos nossa passageira sob a sombra de uma grande árvore, Tonhâo me fêz um sinal para que o ajudasse. Enquanto os brancos exploravam os arredores ou tomavam banho de mar, em questão de hora, estava montado um bem organizado acampamento. Em vista das circuntâncias, é claro. Haviam duas barracas cobertas com couro e tendo nas laterais peças em um pano rústico. Para os brancos, é óbvio, que eram em número de seis. Um casal, sendo ela a mulher que carregaramos e o esposo, que parecia ser um gentio ou mercador. E mais o feitor e seus tres asseclas. Nossas cabanas não passavam de uma modesta armação de páus com cobertura de folhas de palmeiras, existentes a reveria na orla marítima.

A noite, após um jantar absolutamente contundente e muito saboroso, aonde desfrutamos dum ensopado a base de peixes frescos pescados ali mesmo, nos agrupamos na volta de uma pequena foqueira. e cada um ritmando aonde podia, pomo-nos a cantar tristes canções. Só então percebi mais claramente as diversas origens negras ali representadas, resultado do ativo aprisionamento que sofriam por parte dos tumbeiros, pois afora os fulas e bantos, haviam muxicongos, rebolos, fântis, jejes e ainda caçanjes de Angola. Num dado momento senti que me cercavam, pois enquanto Tonhão ficava de cócoras atráz de mim, a minha direita sentou-se One e a esquerda um negro de aparência inconfundível, ainda que forte e não tão velho, tinha a pele enrrugada e como que rachada, tal qual as ressequidas terras do fundo seco de um lago quando o tórrido verão se faz inclemente e o seca. Já seus cabelos eram ralos, quase lisos e quase brancos. Era evidentemente um homem santo, ou feiticeiro se preferirem, e de origem só podia ser jeje. No que não me enganei, pois não entendi nenhum sentido nas palavras quando se dirigiu a mim, ao que One esclareceu:

- Fale banto, Nagô.

- Ah, o príncipe não fala o meu dialeto, devia ser mais culto para um que provém de estirpe tão antiga. Repito, portanto: Tu e One estão predestinados e o tempo urge. Como ela já sabe o que fazer, não te darei maiores esclarecimentos, te digo apenas o seguinte: descreias daquilo do qual sou mero portador da mensagem e terás alterado muito mais do que poderias imaginar. Acredite, meu jovem guerreiro, somos todos peças equilibristas num jogo universal, mesmo o futuro está sendo escrito aqui e agora.

Por momentos permanecemos todos nós em refletido silêncio, cada qual se reservando a impressão pessoal ao que fôra dito. O qual foi quebrado pelo próprio Nagô, numa voz que agora evidenciava uma suavidade inusitada.

- Vão, procurem na cumplicidade da noite, sob a luz das estrelas, ao som das ondas se espraiando melodiosas, um auspicioso berço de areia.

Devo confessar que não estava entendendo aonde queria chegar, ainda que ações atuais virem eventualmente por consequência alterar o futuro, não há nisto novidade, visto ser eu próprio talvez o futuro alterando o passado. Um raciocínio complicado mas, pensando bem, não estarei aqui exatamente para alterar o futuro. Afinal, o corpo que ocupo, já não teria no seu currículo as horas últimas que tenho penado, tampouco as horas sequenciais que há pouco me deram a entender seriam no mínimo expectantes, senão extasiantes, visto o tom de urgência poética. Tirou-me One à fluidez dos pensamentos, quando tomando minha mão, erguendo-se, fêz com que me erguesse também e de mãos dadas partimos para dentro na noite. Só quando nos distanciáramos o suficiente para não sermos ouvidos, salvo se seguidos, é que One quebrou sua mudez:

- O que não foi explicado, aquilo que sei, não são necessárias palavras para que o entendas. Caminha um pouco ainda comigo, me deixa encontrar o local ideal. Que possua como cúmplice a noite, ela já nos acalenta; que seja abaixo das estrelas, bom, já o estamos, somos cativos dos seus mistérios; que se ouça o melodioso som das ondas a beira mar, ei-las já musicando; que seja de areia o nosso leito, será que há algum lugar aonde esta possa ser mais fina e branca do que esta daqui, justo aonde neste momento estamos?

Me confesso possuído, nada no mundo me atrairia mais do que estar alí naquele lugar, naquele momento, com aquela mulher, ainda que mal percebesse seus traços na escuridão da noite, aonde a lua minguava. Ainda que mal a conhecesse, era como se vital a sua presença, em meu instinto já a cortejava abertamente.

One retorna:

- Está escrito que haveremos de gerar continuidade, é fato que estou no meu período fértil, e que o tempo se esgota. Ainda que não saiba de onde, sabe o feiticeiro do perigo mortal que te afetará justo no dia de amanhã, não comseguiu ver o teu futuro, apenas me vê grávida no meu e sem a tua presença. Por isto a urgência, pois o filho que estarei carregando é teu.

- Pelo senhor das matas, One, não estarão vocês um tanto dementes, não lhes estará afetando o juízo, a escravidão ?

- Afasta, de teus sentidos, a soberba, meu rei. Mas não importa, afinal, não estivessem nossas vidas já intercruzadas no destino, por conta própria me deixaria seduzir, te seduzindo; pois te quero desde o primeiro momento em que te vi.

Ao fim destas palavras, pondo dois dedos em meus lábios, pôs fim a falação, fazendo-se ação. Uniu seu corpo ao meu e me ofereceu, já úmida e ansiosa, a boca. Um beijo a princípio tímido e inexperiente desenfreou uma ganância quase selvagem de posse. Logo, os trapos que nos vestiam jaziam na praia e nós rolávamos nús, acoplados, famintos, habitantes um do outro, numa primitiva paixão sexual. Expandimo-nos rápidos em busca do gôzo, não houveram restrições nem prazeres, logo explodíamos em terminal consumação. Foi como se todas as nossas energias houvessem sido direcionadas para o ato, pois só nos apercebemos de nós mesmos novamente, quando já de madrugada, Tonhão nos sacudia para que acordássemos.

Quando nosso instinto é visto com naturalidade, não afetamos pudores descabidos, porisso nossa nudez foi desimportante. Inebriante, foi ver, na expressão daquele êbano gigante, uma faceirice adolescente, mais do que a nós jubilava fervorosamente, cheio de dentes e abraços, a nossa amorosa entrega.

Durou pouco porém a nossa alegria, pois em seguida, ouvimos uma voz gritar distante, pros lados das barracas:

- Tonhão, Tonhão. Levantar acampamento.

Enquanto, apressados, recolhíamos nossos trapos e os vestimos, Tonhão corria pelo espraiado afora, célere, atendendo ao chamado. Já vestidos, One fixou-se no meu olhar, demorou-se ali, um pouco, angustiada, e falou:

- Hoje, mais do que nunca, te cuida muito, de ora endiante não somos apenas nós. Carrego comigo a semente doutra vida.

E me deixou ali, plantado, com as minhas íntimas interrogações, partindo também ela rumo ás tarefas do dia, que já se fazia presente. Também parti, buscando por Tonhão. A seguir, enquanto dava conta das tarefas a mim destinadas, em meus pensamentos deixei fluir os últimos acontecimentos. Senti, ainda que os tivesse vivido, havia em mim como que um alheamento em relação aos fatos. Eu estava ali, me sentia ali, mas não identificava problemas maiores. Então, entendi porquê ? Na dualidade da minha então personalidade, aquela que realmente me importa, eu o sei, justo agora, está a salvo. Neste momento desprezei meu egoísmo e jurei, assumindo como meu realmente o corpo que habitava, fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para preservar sua integridade.

Terminado o desjejum, seguimos viagem. O dia transcorreu sem novidades ao passar das horas, aonde, numa atmosfera toldada por nuvens, com pouco sol, talvez num prenúncio de chuva para a noite, pudemos caminhar gozando o frescor da brisa marítima. Havia uma quase bonança envolvendo a caravana, como se uma calmaria tivesse a todos arrebatado. Estivêssemos em alto mar e o medo vestiria os meus sentidos, pois é fato que a calmaria acorda o tufão. Entre humanos de tão diferenciadas realidades, não acordará esta paz à violência. Lembrei-me, então, da previsâo obtida de Nagô: -amanhã um perigo mortal te afetará.

Mal acabara de formular este pensamento, quando ouço a voz do feitor, soando, como que empastada, mas, ainda assim, rude, vinda lá de tráz:

- Acaaampar !

Como de costume, cada qual se ocupa da sua tarefa, num sincronismo inadvertido mas funcional. Algum tempo depois, quando já estávamos providenciando o nosso próprio local de repouso, abaixo de uma extraordinária figueira, ouviu-se uma gritaria para o lado das barracas senhoriais. A princípio pensei que se tratava de alguma confusão entre eles mesmo, mas tirou-me Tonhão da minha apatia, quando em sua mudez, ainda que não falasse nada entendível, gaguejou apenas uma palavra: One !

Antes de mim, tomou o rumo da balburdia em abalada correria. No que o seguimos, eu e outros como nós, irmãos na mesma sina. Quando chegamos ao local, Tonhão já havia tomado a dianteira numa ação violenta, pois partira como um touro enlouquecido para cima do feitor e seus dois ajudantes, que tinham dominado e desnudado nossa amada One. Ouvimos, ainda, antes que fôssem atropelados, a ordem vinda do primeiro:

- Levem-na prá minha barraca, hoje vou fazer desta virgem uma mulher.

A seguir, o pandemônio, pois foram os quatros jogados por terra quando Tonhâo os atingiu, inclusive One. Ficamos, nós outros, observando, na expectativa. Enquanto Tonhão e os dois ajudantes se ergueram rápidos, se engalfinhando numa luta feroz, One e o feitor ficaram ainda por terra, estonteados. Logo a vantagem ficou por conta do gigante, pois em sua agressividade descontrolada ergueu um deles e o jogou de encontro ao tronco duma árvore. Foi possível ouvir a espinha do mesmo se partindo; depois, estarrecidos, vimos quando seu corpo se vergou e tombou, ficando inerte sobre a grama. Se já não estava morto, pouco faltava. O outro ajudante, apavorado, buscou em sua cintura um grande facão mateiro e o empunhou, encarando seu adversário, que agora parecia estranhamente calmo. Neste momento, tanto One quanto o feitor, mal se equilibrando sobre as pernas, bêbado, mas quieto, também acompanhavam os acontecimentos. Que, alhiás, se desenrrolaram rápidos. Pois o ajudante, talvez confiando na posse da arma branca, que bramia, se jogou afoito à luta. Esta foi a sua perdição, não estava nem de perto preparado para tão temível rival. Mal seu braço entrou no espaço do adversário, este o dominou e como que num só golpe o desarmou, assumiu a posse da arma e desferiu, numa cutelada precisa, um faconaço em sua garganta, quase lhe decepando o pescoço, estava morto antes de cair no chão.

Mal terminara tão selvagem contenda e o feitor reage, colérico, dirigindo-se a One:

- Sua negrinha miserável, tudo por tua culpa.

Em sua mão direita uma pistola de um só tiro foi se erguendo até o nível da mira, sendo engatilhada, enquanto gritava:

- Morra, que a terra te coma, cadela !

Foi quando reagi, de todos era o mais perto da cena. Naquele momento não pensei em nada, só na necessidade premente de salvá-la, e foi gritando que tentei impedi-lo. Num lance de cinema, no último segundo percebi todos os lances dos acontecimentos. Enquanto meu corpo como que viajava, erguido no ar, tentando atingir o feitor, após ter saltado; a minha direita, Tonhão, também se jogava sobre o mesmo brandindo o imenso facão; por outro lado, ao perceber o perigo, o feitor dera meia volta e com êle a mão empunhando a pistola. Ficou a cena como que no vácuo e estática por um momento. Mas, estava escrito, ali, a morte ceifaria. Quase num mesmo instante, tanto a arma de fogo quanto a branca cumpriram seus objetivos. Por um lado uma bala penetrou destrutiva num peito negro, por outro lado uma lâmina amealhada por uma mão poderosa partiu ao meio uma cabeça branca.

Fim da cena, jazíamos numa só poça de sangue, mortíssimos da silva, eu e o feitor. Ao lado, One chorava desconsolada e Tonhão buscava confortá-la, enquanto que, de pé, ao lado dos dois, observando, o feiticeiro parecia sorrir enigmático. Não pareceu se dirigir a ninguem em especial quando pronunciou entre dentes, baixinho:

- Cumpra-se teu desejo, mestre.

Já agora eu voltara a ser um observador incorpóreo, um Augusto espiritual, mas, percebi, estavam gravadas na minha mente as experiências vividas enquanto escravo. Mesmo a dor da perda de um sentimento florescente, como o que me despertara One, estava arraigado a uma saudade, agora inesquecível.

Vi, quando na manhã seguinte, após o enterro de todos os mortos numa vala comum, despacharam-se os tres brancos sobreviventes e seguiram viagem. Alguns dos negros pretenderam segui-los, mas foram convencidos por One a ficar. Lembro, ainda, das suas poucas palavras:

- Não é com a liberdade que sonhamos? Pois esta tragédia nos trouxe mais do que a liberdade, nos deu a chance de criarmos um novo berço para os nossos descendentes. Já que estamos irremediavelmente fincados nestas novas terras e vimos o quanto é fértil e rica, façamos dela a nossa morada. É aqui que quero criar o filho que carrego no ventre. Aqueles que pensam como eu, homem ou mulher, me sigam. Vamos voltar para o lugar do desembarque e lá fundar nossa colonia. Quando chegar algum navio negreiro, vamos destruí-lo e libertar nossos irmãos.

Todos, sem excessão, a seguiram. A seu lado, orgulhoso e fagueiro, vigilante, sobrecarregado de tralhas nos ombros, caminhava um altivo Tonhão.

                                                                           *

quarta-feira, 3 de março de 2010

VAZÃO DE CULPA

- Simão! Onde estás? Simão!

           A voz já repetira o chamamento ínúmeras vezes e nada, nem ninguém lhe respondia. Só o silêncio da noite escura como o breu persistia ao seu redor.
           Escuridão realmente medonha, de escassos vultos mais escuros ainda, de esparsas árvores espalhadas pela campina.
           Um grito rouco, desespero, em horror e medo, com a mulher correndo às cegas, na visão do instinto.
           Brutal tropeço, ela tomba, de cara no chão, sentindo em seu rosto a grama  úmida e fria, convulça num choro apavorado.
           Escuridão...solidão, e o abandono de um corpo fustigado que beija o capim rasteiro a altura dos seus cabelos. Há uma espera, longa espera, no silêncio que inda perdura, em seus ouvidos tenta captar um movimento, um som qualquer.
           Levanta-se na ânsia de não estar alí, e corre, tropeça, cai de novo e chora de novo, com sua mente principiando a desvairar, os sentidos já confusos, dum terror que se expande ante a violência do medo.
           Subitamente, o silêncio é quebrado, seu coração disparando em fremitos adoidados, ao som desconhecido, estridente, incálido, pavoroso, sutilmente humano, saído lá do profundo da noite.
            Paralisada, deitada ainda, a mulher esperou, suando, em pânico. Mas, nada. Tudo voltara a ser silêncio, agora sitiante, se esparramando por toda a campina ao derredor. Então, ela, que mantinha os olhos abaixados, atreveu-se a erguê-los, e notou, percebeu, viu...os olhos, um par de olhos frios que resplandeciam, denotando ódio e virulência, dentro da noite...
            Descontrolou-se de vez,  a mulher, implodiu a razão, grita já quase louca, sua consciência em culpa.
- Não! Simão, não! Não fui culpada, sempre me forçaram...
            E, então, maciamente, a mente tem oscilações que a razão desconhece, com a voz tremendo, lança o pedido, que para si própria, acredita, impossível.
- Acredita-me...
            E gritando.
- Acredita-me Simão!
          O par de olhos lá, permanecidos quietos, sem piscar, fixos. Mas, logo, o som obscuro, humano/inumano, ouviu-se novamente, terrorífico no meio da escuridão nefasta, como se fora um habitante identificado com a noite.
            Na mulher, a mente sitiou-se em perdição, desenfreou a jogar suas culpas, em dizeres que nunca obtiveram respostas...mas o olhar lá, estático e gélido.
            O desespero afinal lança o grito do reconhecimento derradeiro.
- Mata-me, é verdade, sou culpada. Ah, sei que sou imoral.
            A mente está enlouquecida pelo medo...
- Eu é que sempre os procurei...e fui de teu irmão também. Maldito, esperastes muito por esta hora, não é!? Sabias que ela iria chegar e que eu ainda, um dia, ficaria prostrada a tua vontade. Vamos, aproveita agora, mata-me...mata-me...mata-me.
            Calando-se, o silêncio persistia na noite...esbravejou.
- Covarde!
            Troçando, irônica.
- Sempre humano! Maldito hipócrita, não vês que sou tua dor, teu desespero, tua desonra. Não vês que esta é a tua oportunidade de te livrares de mim...Sim, pois não te perderás como das outras tentativas aos meus encantos, quando capitulavas sempre entre meus braços, em soluços, na fraqueza e na paixão que te arrazavam. Mata-me!
            Súbito, um mero movimento no escuro...mero roçar de pés no chão...e o medo, saltando do sumo da razão, libertando a fera dentro da mulher, deu-lhe forças e ela saltou por sobre o vulto que pensava ser Simão.
            Baque surdo, mãos homicidas tomam daqueles olhos, o corpo e os tentam estrangular, ferir, matar. O corpo permanece rijo, sólido, mas os olhos se fecham ao contato das mãos, uma garganta é macerada num frenesi de morte...
            A comoção é demais, a mulher desmaia, seu corpo vai ao chão.
            ...mais tarde.
            Na mamhã quente de um sol acordando o dia em alvorada, com a mulher entreabrindo lentamente os olhos, sentindo-ce viva, movendo as mãos, tonta ainda, vê o corpo rijo, alí, a sua frente, manchado de sangue...um palanque perdido na campina, saldo abandonado de antiga lavoura.
            E os olhos, alí, entre suas mãos, esbugalhados...inocente coruja que lhe acometera pavor.
            Suspira, ri, e estremece, ante o gozo de ainda poder desfrutar seu viver e suas conquistas junto a fortuna de Simão.
            Então, desapercebido, seu olhar busca o horizonte, deparando-lhe a descoberta atroz: ...Simão!

            ...Simão que a passos lentos se afastava.
NOTA: Este conto foi originalmente publicado junto ao livro de poemas, Chora Solidão, fato que eu não repetiria nos dias de hoje.

Quem sou eu

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Sou Nedi Nelson, como profissional abraço a contabilidade e nesta me realiza a auditoria; como pessoa sempre sublimei ler e escrever, a poesia é lugar comum, hoje vivencio o romancear; como hobby e paixão descobri as orquídeas, o estudo, o cultivo e por fim o descortinar de suas florações..e eis que minha alma transcende o poetar. Viver o entreabrir de uma orquídia me é palco sensível para deixar fluir o poema. A idéia é criar três seções específicas, uma para partilhar a palavra escrita, seja por meio de poemas, contos ou romance, estejam publicados ou não, que venham a ser publicados ou não; outra para cultuar, via fotografias e textos, as minhas orquídeas; e outra para falar de minhas viagens, via fotografias e textos, seja quando a trabalho nos contextos da auditoria, em minhas folgas, seja especificamente a lazer .

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